sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Ensinar na roça



 
O nome da escola me prometia coisas boas: Córrego Alegre! Fui visitar a escola assim que me autorizaram assumi-la. Era uma tarde quente e meu fusca correu feliz pelo asfalto e sacolejou engraçado na estradinha de terra que terminava antes da escola. Um riachinho, bordejado por pés de jamelão, me recebeu murmurejando e pude conversar mentalmente com ele de cima de uma ponte pequenina, perguntando se realmente eu estava fazendo a coisa certa.

Com esses temores cheguei à escola. Era uma construção típica de escolas rurais: uma classe, um corredor, uma despensa, uma cozinha com fogão a lenha. Tudo triste, sem personalidade, sujo e com ar de abandono permanente. A porta da frente estava meio aberta e, ao entrar, percebi que vacas e bois costumavam transitar por ali, deixando como marcas de sua indiferença ao espaço de saber, seus dejetos inconfundíveis no cheiro e na forma... Do lado de fora havia um banheiro com a porta quebrada e, como todo o conjunto, sujo e entregue ao abandono.

A classe era escura e possuía carteiras, de madeira carcomida, para dois alunos (iguais àquelas que eu me sentara em minha escolinha de criança!) enfileiradas uma atrás da outra. Estavam voltadas para o quadro verde esburacado, de cimento liso. Pensei que sobre ele deveriam bailar reflexos que, por certo, impediriam as crianças enxergarem o que nele fosse escrito. Imaginei o som rascante do giz sobre a textura inadequada do quadro e que vestígios de escrita ficariam visíveis sobre superfície tão lisa...

Algumas crianças apareceram curiosas, mas correram assim que tentei falar com elas.

Havia uma senhora que costumava ajudar a professora anterior como “servente”, só tendo sido contratada por alguns meses. Ela foi chegando, de mansinho, e combinamos que ela faria a limpeza da escola, para que eu pudesse começar no outro dia.

Comecei a trabalhar cedinho no dia seguinte, com o propósito de tornar o ambiente convidativo para a aprendizagem e coerente com as regras de higiene que deveriam ser ensinadas naquele ambiente. Levei alguns livros e aproveitei uma prateleira vazia da dispensa para organizar um cantinho como se fosse uma micro-biblioteca. Pendurei alguns mapas na parede, buscando deixa-los à vista, preservando-os da poeira acumulada, das traças e, estrategicamente, cobrir feios buracos no reboco da parede.

Prometi a mim mesma preparar os famosos e costumeiros cartazes de aniversariantes, ajudantes do dia, regras da turma, registro do tempo, além de outros que estimulassem a leitura, o companheirismo, o estudo. Separei algumas carteiras para um lado, de tal forma que pudessem constituir um ambiente de estudo em grupo. Era complicado porque as carteiras não se ajustavam a tal propósito e, além disso, eu perdia dois lugares no conjunto e mais dois numa das fileiras. Fiquei torcendo para que houvesse mais carteiras do que alunos.

Os primeiros dias de aula foram repletos de surpresas para mim e para as crianças. Fomos aprendendo coisas que nos pareciam muito estranhas. Estranhei muito o fato de que todas as crianças traziam os cadernos encapados de folhas de papel ofício branco, herança do cuidado da professora anterior. Traziam-nos enrolados em um pano de saco, também branco, e, acondicionados em sacolas de plástico. Disseram-me que era uma exigência da “tia”. Mais surpresa fiquei quando constatei que as letras de todos eles eram idênticas à letra da outra professora. Evidentemente, eram resultantes de intensas horas de caligrafia. Eles também se assustavam com minhas risadas e não sabiam se portar diante de minhas perguntas e comentários – do meu ponto de vista, normais e estimulantes. Quando eu me aproximava, se encolhiam, como se temessem uma agressão física.

As aulas inicialmente foram sendo levadas assim: eu buscava atingir o mundo das crianças e faze-las ver o mundo usando os conhecimentos que a escola deveria lhes proporcionar. Eu dividia, como todas as professoras o faziam na época, as tarefas dasséries distintas e me ocupava com uma dessas séries durante um dado tempo, enquanto as crianças das outras séries executavam exercícios de fixação, sozinhas. Não me satisfazia essa forma de trabalhar, mas eu não havia encontrado outra e tentava minimizar a artificialidade da situação criando “deveres”, do meu ponto de vista, o mais aparentemente lúdicos e próximos à realidade das crianças.

Um dia, eu estava bastante chateada com a aula e me assustei com uma galinha que, depois de observar por muito tempo a aula da janela, voou para dentro da sala de aula. Gritei para as crianças: Pega! Pega! Foi um alvoroço só: as crianças corriam esbaforidas e gritavam na excitação do inusitado. Quando, afinal, a galinha foi pega e posta sobre a minha mesa, transida em seu medo, ela evacuou sobre o tampo, fazendo as crianças rirem e apertarem o nariz diante do mau cheiro. Eu não havia planejado nada daquilo, só havia agido intuitivamente, levada por um impulso. Retomando o meu controle, perguntei provocadoramente: Por que esse mau cheiro? As crianças, indistintamente à série que estudavam, começaram a falar sem restrições. Lembravam que a galinha comia restos de comida, milho e bichinhos. Disseram que toda a comida era misturada e passava pelo “papo”, que o papo era a moela. Quando se abria a moela havia mau cheiro também, por que a comida ficava muito tempo ali, espremida e devia se estragar...

Registramos no quadro as palavras: milho, papo, galinha, comida, moela... As crianças disputavam a vez para escrever, buscando acertar a grafia, felizes com a oportunidade de escrever no quadro... Continuamos a conversa, calculando quantos ovos uma galinha colocava por semana e o preço que iriam custar, quando vendidos... A galinha foi embora e nós continuamos desenhando o tipo de pé que tínhamos e que a coitada tinha: qual o mais bonito? Qual o maior? Quem poderia escrever sua opinião no caderno? Quem poderia ajudar o colega a fazê-lo?

Ajudar ao colega nos exercícios parecia ser muito engraçado para eles: era proibido, tia...

Preparamos uma espécie de gráfico para demonstrar quais os pais que criavam galinhas, patos, bois e quais os pais que plantavam café, mandioca, milho...Desenhamos galinhas, bois, cabras, pés de café, árvores e escrevemos sobre eles. As crianças queriam escrever muito e quando não sabiam a palavra, me pediam ajuda e logo estavam encantadas em manusear o dicionário. Organizadas em grupos mapearam a localização das suas casas, os galinheiros, os currais, as plantações...

Não havia mais primeira nem quarta séries. Eram só crianças aprendendo juntas, na solidariedade que se deseja para a sociedade no mundo. Os grupos se reorganizavam de acordo com o esforço em superar as dificuldades que encontravam em seus fazeres ou ao sabor dos saberes desejados... Eu era mais uma aprendendo o meu fazer com seus aprenderes...

Corríamos pelos cafezais num pique de bola que contabilizava quantas vezes a equipe detinha o poder sobre a “redondinha” e cumpríamos os horários da Educação Física. Colhíamos pedrinhas e sementes para o saquinho de contas para solução de problemas de Matemática, escritos como redação de Português. Observávamos pássaros e borboletas, visitávamos hortas, colhíamos frutas e legumes para a sopa, estudando Geografia e Ciências, fazendo e descobrindo a História do lugar...

Discutíamos política, ética e ecologia falando sobre a vida na roça e na cidade. Ríamos. Líamos e escrevíamos: cartas, cheques, atas de igreja, recibos de venda... Fazíamos brinquedos de argila, de lata e de madeira... Muitos desenhos, pinturas, teatros... Fizemos reuniões com os pais e com o pessoal da prefeitura: ganhamos pintura da escola, um banheiro e uma cozinha, máquina na estrada...

Aprendemos. Ensinamos. Vivemos. Fomos felizes. Despedimo-nos numa festa com doces e flores, marcada por um teatro escrito e produzido pelas crianças: choro, tristeza, saudades, lembranças...


Marisa Valladares