sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Mapas, paisagens e sociedades: por uma Geografia para crianças...



Quando crianças, não separamos as coisas e os acontecimentos da vida em pedaços, com nomes definidos como a escola o faz, ensinando-nos a fazê-lo. Então, a Geografia, que hoje chamamos assim, é para nós apenas a curiosidade e a aprendizagem sobre as formas das paisagens, a compreensão de territorialidade feita a partir do domínio de outras pessoas sobre um dado espaço geográfico ou a sensação de parecença e de pertença nascida na vivência da regionalidade de nossa comunidade... Sequer precisamos tomar consciência desses fatos como algo desconectado do que vamos vivendo matematicamente na constatação de muitas ou poucas pessoas na disputa pelo território ou da historicidade do que se constrói no dia-a-dia, por exemplo. Os mapas, que traçamos mentalmente, nos conduzem em raciocínios que ilustram o caminho mais longo de Chapeuzinho Vermelho e o caminho mais curto do Lobo, rumo à casa da vovó, assim como conduzem nossos passos até aquele canto escondido do jardim onde ficamos emburrados, até que a zanga com os adultos passe...

Na escola, nossas aprendizagens ganham um caráter de organização sistemática: começamos a ver, a pensar e a viver a vida, com todos os seus adereços, na perspectiva consciente de interrogá-la em suas manifestações, de apreende-la em sua complexidade, de desvendar seus segredos...

A Geografia, como outras áreas do conhecimento, começa a tomar a forma das paisagens, os contornos dos mapas e a maneira de viver das sociedades.

As paisagens são a manifestação mais evidente do jeito como a natureza e as sociedades se integram numa organização que evidencia o espaço geográfico. As paisagens são o meio que adultos experientes usam para espiar, estudar e compreender o mundo. As crianças também, só que de uma maneira ingênua, espontânea. As paisagens mudam com o tempo, mas guardam marcas das impressões impostas pelo mesmo tempo. Simultaneamente, adquirem marcas do novo - que são as construções e as desconstruções realizadas pelos fenômenos atmosféricos, pela erosão, pela ação humana, pelas atividades dos elementos hidrográficos, marítimos, da crosta terrestre - escritas em sua face. As paisagens apresentam, assim, “o novo no velho e o velho no novo” (SANTOS, 1986). As paisagens contêm em si as dimensões de territórios e de regiões. Muitas vezes, as razões de algumas dimensões se tornarem territórios estão inscritas nas paisagens, que reúnem as condições geológicas da presença da água ou do petróleo, por exemplo, justificando a luta pela posse da área geográfica e consolidando assim parte das condições que caracterizam a categoria geográfica de território, ou seja, o poder sobre a área. Também é a paisagem que caracteriza parcialmente uma região, quer seja pela condição climática, vegetal ou de relevo, por exemplo.

Daí, que as paisagens tenham íntima relação com o mapeamento. Mapear regiões ou territórios inclui destacar aspectos de sua paisagem, em curvas de nível que revelam diferentes altitudes, em legendas de cores que indicam o tipo de clima predominante, em símbolos que indicam a densidade demográfica das populações atraídas ou expulsas por condições de vida facilitadas ou dificultadas pelas expressões paisagísticas que guardam em seu seio riquezas ou que se tornam adversidades para o trabalho das sociedades.

Os mapas, mesmo não sendo a expressão real das paisagens que percebemos e nas quais vivemos, são uma das formas de representa-las com um determinado fim e a partir de uma concepção implícita em seu fazer. A cartografia escolar se ocupa de ensinar e de aprender a ler mapas feitos por cartógrafos, bem como desenvolve habilidades de mapeamentos com objetivos escolares. As alternativas didáticas para o trabalho com mapas junto a crianças precisam considerar a capacidade de raciocínio descentrado, a capacidade de abstração, habilidades de percepção espacial, competências de representação gráfica. Essas competências, habilidades e capacidades atingem diferentes graus de desenvolvimento no decorrer da infância e com variações de sujeito para sujeito, razão da exigência de conhecimento sobre o assunto e da necessidade de sensibilidade por parte da professora no ensino da cartografia escolar.

A importância da Geografia na formação das sociedades se efetiva pelo tipo de aprendizagens que proporciona, intimamente relacionadas à compreensão das mudanças rápidas que acontecem nos espaçostempos atuais, cujas elaborações são de responsabilidade da ação, omissão, conivência ou desconhecimento dos cidadãos de diferentes lugares do mundo. Tornar essa compreensão uma aprendizagem significativa para as crianças, exige prepara-las para lerem o mundo e escreverem a vida nele de forma sustentável e solidária nas diferenças.

Acreditando nisso, insisto no ensino de Geografia para professoras, explorando as interfaces que se estabelecem entre essa área de conhecimento e outras tantas, numa relação que não pressupõe hierarquia de importância, a despeito da diferença de carga horária, destinada ao estudo pela legislação ou pela unidade escolar às diferentes disciplinas representantes dessas áreas, ou da paixão de quem a elas se dedica... Considerando que na vida, o conhecimento pode ser comparado aos fios que usamos para tecer nossas visões sobre o mundo, podemos entender como nossas decisões e ações conduzirão esses fios no delicado e intricado bordado que representa a história das civilizações, numa perspectiva do cotidiano das pessoas, não na perspectiva do que contam escritores. Ainda que trancemos fios de diferentes cores, perdão, de diferentes saberes de diferentes disciplinas, a tessitura constituirá um todo único, que é o conhecimento auferido pela humanidade, em um dado espaço e em um dado momento. Não é Geografia, embora impregnada dela, tanto quanto a Geografia estará impregnada da trama.

Escolher significâncias de cada área de conhecimento para dizer dessa área, portanto, é e sempre será um risco e um recorte individual de quem executa esse recorte. Estou neste risco, neste traço. Minha escolha por paisagem, mapa e sociedade, assim, guarda convicções pessoais de sua representatividade e significância dos saberes docentes da Geografia escolar posta a serviço da formação de cidadãos.

Parece-me que as paisagens permitem-nos ler Geografia nas aparências do mundo, que os mapas podem nos ajudar em possíveis escritas do que é vivemos geograficamente no mundo e que como partícipes de sociedades podemos nos inscrever na zona de fronteira entre as dimensões de escrita e de leitura da Geografia...

Acredito que nas paisagens circundantes das crianças podemos extrair um campo propício de aprendizagens. Ensinar explorando paisagens significa ajudar às crianças a identificar nelas rios que cortam montanhas em vales, juntando águas que correm de vertentes para irrigar plantações, águas que guardam peixes para alimentação ou que movem turbinas para produzir energia elétrica... Paradoxalmente, é possível incluir na leitura o assoreamento, a poluição, o afogamento de vilas e de florestas, o desvio de cursos de água, a seca no leito ressequido... Se as montanhas podem ser altaneiras e verdes de matas e campos, também podem apresentar manchas de escorregamento de terras em ravinas e voçorocas, se as praias podem se modificar com o reflexo de diferentes fases da lua e com a dança de brisas terrestres e marítimas que caracterizam lugares de veraneio, de moradia bucólica, de comunidades de pesca, também podem acumular o negrume de petróleo derramado, de peixes mortos, de catástrofes resultantes de mudanças no clima geral e até mesmo o encastelamento de mansões excludentes e exclusivas... Se o pasto contrasta com as culturas agrícolas, se espigões se distinguem de mocambos, as paisagens ensinam a ação de sociedades em movimento, podendo ser retratadas em mapas.

Ensinar isso às crianças é mágico e guarda em si esperanças de mudanças planejadas em simples croquis ou maquetes, nos quais podem “brincar a sério” apresentando aprendizagens que sinalizam atenção aos fatos e fenômenos que estão em curso. Aprender com as crianças em suas aprendizagens, garante a elas a importância de suas presenças no mundo. Isso nos dá a concretude de que o futuro é possível e o que hoje nos parece utopia pode ser o sonho realizado lá adiante em paisagens onde sociedades mapeiam um mundo mais bonito, mais justo e melhor de se viver...


de Marisa Valladares